Torcedores foram expulsos de arenas após protestos contra o presidente
interino; para juristas, medida fere direito à liberdade de expressão
Grupo teve que deixar o estádio do Mineirão, em Belo Horizonte, após protesto
“Se você se manifestar com uma faixa ‘fora Temer’,
vamos pegar a faixa”. Foi assim que um agente de segurança do estádio
do Engenhão, no Rio de Janeiro, iniciou uma discussão com dois
torcedores que assistiam à partida da seleção brasileira feminina de
futebol contra a China, na quarta-feira 3. “Dentro do estádio não pode”,
disse o funcionário, conforme vídeo que circula na internet.
Protestos contra o presidente interino
Michel Temer (PMDB) têm sido reprimidos nos Jogos Olímpicos, e alguns
manifestantes chegaram a ser expulsos das arenas. No sábado 6, ao
acompanhar uma prova de tiro com arco, um brasileiro foi retirado do
Sambódromo por agentes da Força Nacional de Segurança. Motivo: um
controverso grito ‘fora Temer’.
No mesmo dia, um grupo de 12 torcedores que assistia à partida de
futebol feminino entre França e Estados Unidos teve de se retirar do
estádio Mineirão, em Belo Horizonte, após um protesto: além de pedir a
saída de Temer, o grupo exibiu letreiros nos quais se lia “volta, democracia”, em inglês (“come back democracy”).
Outros casos de repressão foram relatados pela imprensa e nas redes sociais, e o Comitê Olímpico Internacional (COI) e o Comitê Organizador da Rio 2016
anunciaram que não irão tolerar cartazes de caráter político. “Queremos
arenas limpas”, afirmou Mario Andrada, diretor de comunicação da Rio
2016. Vaias, gritos e cantos estão liberados. "Se isso não fosse aceito,
metade do Maracanã teria sido esvaziado [na abertura dos Jogos]."
Sobretudo nos poucos segundos nos quais Temer assumiu o microfone.
A determinação se baseia na lei 13.284, que dispõe sobre as medidas
relativas aos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016. A lei, que foi
sancionada por Dilma Rousseff no dia 10 de maio – dois dias antes de seu afastamento
pelo Senado –, diz em seu artigo 28º que é proibido “portar ou ostentar
cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas,
de caráter racista ou xenófobo ou que estimulem outras formas de
discriminação”, bem como “entoar xingamentos ou cânticos
discriminatórios, racistas ou xenófobos”.
Em outro parágrafo, contudo, o texto diz que “é ressalvado o direito
constitucional ao livre exercício de manifestação e à plena liberdade de
expressão em defesa da dignidade da pessoa humana”. O trecho está de
acordo com a Constituição de 1988, que garante aos brasileiros a “livre
manifestação do pensamento” (artigo 5º, parágrafo IV).
A lei aprovada em maio não faz qualquer menção a protestos
“políticos”. Para a professora Eloísa Machado, da Fundação Getulio
Vargas (FGV) Direito – São Paulo, manifestar reprovação política não
caracteriza ofensa, e a lei está sendo interpretada de maneira
“irresponsável, ilegal e inconstitucional”. “É uma violação à liberdade
de manifestação e de expressão no Brasil, um tipo de censura aplicada
aos jogos”, afirmou, em entrevista a CartaCapital.
De acordo com a professora, o Coletivo de Advogados em Direitos
Humanos (CADHu) – do qual ela faz parte – entrará com uma ação na
Justiça Federal de São Paulo para garantir a liberdade de expressão na
partida das quartas de final do futebol feminino, marcada para a próxima
sexta-feira 12 na Arena Corinthians (Itaquerão). “Estamos preparando
neste momento uma ação judicial para evitar que uma pessoa que queira ir
ao jogo seja proibida de se manifestar”, disse.
Protesto contra Temer antes da abertura dos jogos, na sexta-feira (Jeff Pachoud/AFP)
As expulsões de torcedores ganharam destaque na imprensa
internacional. Reportagem publicada no domingo pelo diário
norte-americano The Washington Post
relata que “os Jogos Olímpicos enfrentaram uma nova polêmica neste fim
de semana – e desta vez não foi sobre segurança, zika ou águas poluídas,
mas censura”. O The New York Times,
por sua vez, afirma que as expulsões “alimentam o debate sobre os
limites da liberdade de expressão” em um País que passa por um período
de “extraordinária agitação política”.
Especialistas consultados pelo site de notícias jurídicas Justificando
também afirmam que o veto à manifestação política é inconstitucional.
“É evidente que pode [protestar]. Qualquer coisa diferente disso é
ditadura”, disse o historiador Salah H. Khaled Jr., professor
de Ciências Criminais da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
Para Márcio Sotelo Felippe, procurador do Estado de São Paulo, as
medidas são reflexo de um autoritarismo crescente no País. “É estado de
exceção. A Constituição de 1988 não existe mais.”
Decisão do STF
A proibição de protestos em estádios foi considerada constitucional
pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2014. Na ocasião, os ministros
analisaram um recurso do PSDB que questionava a restrição a cartazes e
bandeiras nas arenas prevista na lei 12.663/2012, a Lei Geral da Copa.
Por 8 votos contra 2, o STF entendeu que a proibição era legal.
Apesar de ter votado pela legalidade do dispositivo, o relator do
processo, Gilmar Mendes,
registrou em seu voto que “é preciso ter a visão” de que autoridades
públicas estão sujeitas a vaias e protestos, o que não pode ser
confundido com ofensa.
“De fato, é preciso que nós tenhamos também certa compreensão do que
se diz no estádio, que a gente saiba que ali se empregam expressões
figuradas. Ao chamar um juiz de ladrão, ninguém, de fato, está imputando
ao juiz uma dada falta, senão a de que ele errou no lance. É preciso
ter essa compreensão, como as vaias e os apupos também dirigidos a
autoridades, às vezes, de maneira muito mais enfática, a rigor, também
não são ofensas de caráter pessoal, elas são apenas manifestações de
desacordo. Portanto, é preciso ter essa visão”, afirmou Mendes.
Para Eloísa Machado, o Supremo foi claro na sua defesa à livre
manifestação. “O que a Lei Geral da Copa tentava evitar era justamente
um tipo de ofensa de cunho discriminatório, um episódio de racismo, como
nós infelizmente já tivemos nos estádios do Brasil”, diz.
"O artigo analisado é praticamente idêntico ao da Olimpíada, e a
decisão não restringe o direito à liberdade de expressão, pelo
contrário, protege a liberdade de expressão e de manifestação, impedindo
aquilo que a nossa Constituição já impede, ou seja, racismo
e xenofobia. Então, nesse sentido, o 'fora Temer' e o 'fora Dilma' não
seriam conteúdos ofensivos, mas manifestações políticas", conclui a
professora.
Fonte: http://www.cartacapital.com.br
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